Transportes e Mobilidade Urbana


A NATUREZA JURÍDICA DO PEDÁGIO

Fernando Augusto Ferreira Rossa

1 INTRODUÇÃO

É antiga a discussão a respeito da natureza jurídica do pedágio. Uma primeira corrente, hoje minoritária, o considera tributo, sob a modalidade de taxa.
Arrima-se para tanto, no disposto no art. 150 inciso V, da CF, que ressalva e autoriza a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público. Como se trata de norma inserida no capítulo constitucional que disciplina o Sistema Tributário Nacional, conclui pela sua natureza tributária.
Primeiramente analisa-se o que a legislação nacional fala sobre o tema na Constituição Federal de 1988:
“Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: 
V – estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo poder público.”          
“Art.145 – A União, os Estados e Municípios poderão instituir os seguintes tributos:                              
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição.”  
“Art. 175 – Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I – O regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II – Os direitos dos usuários;
III – política tarifária;
IV – a obrigação de manter serviço adequado.”

2 TAXA E TARIFA: AS CORRENTES E SUAS DISTINÇÕES

De acordo com Justen Filho (2003), não é simples a distinção entre taxa e tarifa. Na essência o que se discute é a possível liberdade para o Estado optar entre a taxa e tarifa para remuneração dos serviços públicos. No caso de taxa, aplicar-se-ia o regime tributário. Quando houvesse tarifa, o regime seria de outra ordem. A relevância de discussão apura-se em face de três questões principais, sob o ponto de vista jurídico.
A primeira relaciona-se com a cobrança por serviços potenciais, colocados à disposição do usuário. O regime jurídico da taxa caracteriza-se pela possibilidade de exigência do pagamento da prestação tributária mesmo quando não tiver ocorrido a fruição fática, efetiva do serviço público. O estado é titular do direito de exigir o pagamento em virtude de colocar um certo serviço à disposição do usuário e este tem dever de realizar o pagamento independentemente de ter realizado o consumo.
Já o regime jurídico da tarifa não comportaria solução exatamente idêntica - ainda que se possa admitir a existência de tarifas mínimas. Mas se afigura evidente a impossibilidade de o usuário ser constrangido, contra a própria vontade, a usufruir o serviço e pagar a tarifa.
A segunda relaciona-se como princípio da estrita legalidade, característico do Direito Tributário. Consagrado no art. 150, I, traduz-se na necessidade de todos os aspectos do tributo serem definidos por lei, eliminando-se qualquer margem de discricionariedade administrativa. Por isso, uma taxa de serviço público apenas poderá ser cobrada se tiver sido instituída por lei, o que exige que a determinação de seu montante conste de um mandamento normativo legal. Já a tarifa teria regime jurídico distinto, sendo fixada na via administrativa. Não estaria sujeita ao princípio da estrita legalidade, seja no tocante à sua instituição, seja no relativo à sua modificação.
A terceira tem a ver com o Princípio da anterioridade, pelo qual nenhum tributo será exigido no mesmo exercício em que tiver sido publicada a lei que o instituiu ou aumentou (CF 88, art. 150, III, b). O Princípio aplica-se a taxas e não a tarifas. Como decorrência, não poderia ser aplicada no mesmo exercício a lei que instituísse ou aumentasse o valor da taxa. Já a tarifa pode ser exigida imediatamente depois de publicado o ato administrativo que sobre ela dispusesse (instituindo-a ou aumentando seu valor) (JUSTEN FILHO, 2003).
A discussão poderia ser estendida a outros ângulos do regime jurídico aplicável. Algumas vezes, o interesse da discussão não seria meramente teórico, pois o regime tributário não se reduz apenas às manifestações de legalidade e anterioridade. No entanto as três questões acima seriam as que produziriam disputa imediata.
Há inúmeras propostas doutrinárias a propósito do tema, tal como sumariamente se expõe abaixo.
2.1 A tese da tarifa como “preço público” e da compulsoriedade da taxa
A corrente doutrinária que recebeu as primeiras preferências, historicamente, foi a que relacionava os conceitos de tarifa e preço público. Alicerçava-se na concepção da existência de uma espécie de contrato de direito público entre o Estado (diretamente ou por via dos delegatários) e o usuário. A natureza contratual da relação entre as partes conduziria à espontaneidade da prestação do serviço público remunerado por tarifa, contrariamente ao que se passaria com a taxa. No caso da taxa, haveria exercício de poderes de autoridade, de molde a que o particular não disporia de alternativa (entre consumir ou não o serviço e entre pagar ou não a taxa). Essa concepção estava, em última análise, na fundamentação da súmula 545 do STF (JUSTEN FILHO, 2003).
A partir dessa diferenciação, conclui-se que a taxa seria utilizada quando o consumo de um certo serviço público fosse compulsório, enquanto a tarifa caberia para remuneração de serviços de consumo facultativo.
Ora o equívoco é evidente, na medida em que todo o serviço público envolve uma utilidade cuja a essencialidade induz a ausência de alternativa concreta para o usuário. Assim por exemplo, não há cabimento em afirmar que o consumo de energia elétrica é facultativo. Essa seria uma construção puramente abstrata, porque a energia elétrica é imprescindível à obtenção de utilidades essenciais e indispensáveis. Todo e qualquer sujeito precisa concretamente obter energia elétrica seria juridicamente compulsório.    
Até por isso, essa orientação perdeu quase todo o prestígio doutrinário. Reconhece-se a impossibilidade de aludir a um preço público, porque preço é instituto relacionado à contratação privada. A expressão preço público caracteriza uma contradição em termos, na acepção de que a condição de preço excluiria a natureza de público e vice-versa. (BALEEIRO apud JUSTEN FILHO, 2003).
Já o regime jurídico da tarifa é diverso. Aplica-se regime jurídico equivalente ao de mercado, de modo que a tarifa se aproxima a um preço privado. A tarifa é a remuneração fixada para a obtenção de uma certa utilidade. Os particulares poderão consumir dita utilidade. Se o fizerem estarão sujeitos ao pagamento de tarifa.
Essas ponderações foram conduzindo ao abandono dessa orientação, a qual não é apta a fornecer critérios distintivos a propósitos da diferenciação, ainda que forneça subsídios relevantes para a questão.
2.2 A tese da tarifa vinculada à delegação do serviço
Outra corrente preconiza que o critério fundamental para distinguir taxa e tarifa é ocorrência ou não de delegação do serviço a terceiros. Assim, taxa existiria quando o Estado prestasse diretamente os serviços públicos. Se existisse concessão ou permissão, seria cabível tarifa. (JUSTEN FILHO, 2003).
Um entendimento de acordo com essa tese seria que nas rodovias administradas pelo poder público a cobrança do pedágio teria natureza de taxa e nas rodovias administradas por empresa concessionária a cobrança do pedágio teria natureza de tarifa.
Ataliba (apud JUSTEN FILHO, 2003) combate essa distinção. Este liderou movimento no sentido de reconhecer-se que a Constituição Federal impunha a taxa como instrumento adequado a promover a remuneração dos serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao sujeito ou colocados à sua disposição. Apontou que a delegação para particulares não importaria alteração na natureza ou no regime jurídico aplicável aos serviços públicos.
O grande problema da concepção de Ataliba reside em que a ausência de especificidade e divisibilidade do serviço tende a inviabilizar também a cobrança de tarifas. Ou seja, a concepção de Ataliba torna inaplicável a figura da tarifa, que nunca seria utilizável. Ademais gera outros problemas adiante expostos.
2.3 A tese da livre escolha estatal
Uma outra concepção defendeu a autonomia de escolha do Estado. Cobraria ou taxa ou tarifa, como melhor lhe aprouvesse.
Esse enfoque pode tornar ociosa a discussão, mas não pode ser pura ou simplesmente rejeitado.
Não há cabimento em admitir a outorga de autonomia para o Estado livremente escolher entre taxa e tarifa. Tem de admitir-se que as duas figuras importam não apenas regimes jurídicos diversos, mas também são vocacionadas para aplicação em situações distintas (JUSTEN FILHO, 2003).
2.4 A tese de Moreira Alves
Em conferência realizada por ocasião do X Simpósio Nacional de Direito Tributário, o Min. Moreira Alves produziu uma sistematização bastante produtiva, lançando luzes sobre a temática. Segundo esse enfoque seria possível identificar três espécies de serviços públicos.
Há os serviços públicos propriamente estatais, cuja prestação reflete uma manifestação da soberania estatal. Esses serviços são remunerados por taxa derivada de sua efetiva prestação e cabe ao particular optar livremente por deles usufruir. A categoria abrange os serviços judiciários e emissão de passaportes, por exemplo.
Há os serviços públicos essenciais ao interesse público, cuja prestação se relaciona ao interesse da coletividade. Isso se passa com a distribuição da água e a coleta de lixo. O vínculo entre o serviço e o interesse supra-individual conduz a remuneração por meio da taxa, inclusive com a cobrança por serviços meramente potenciais.
Por fim, haveria serviços públicos não essenciais, cuja fruição ficaria à escolha dos particulares. Esses serviços podem ser delegados e serão remunerados mediante preço público. A categoria abrange os serviços telefônicos e de energia elétrica, dentre outros.
Essa concepção apresenta virtudes no tocante a sistematização. Incorre em certos problemas - tal como a qualificação da atividade judiciária como um serviço público em sentido próprio. (JUSTEN FILHO, 2003).
3 PARECERES
Essa matéria foi objeto de grande discussão quando da edição da Lei 7.712, de 22.12.88, que disciplinava a cobrança do pedágio nas rodovias federais. Naquela ocasião, a Procuradoria da Fazenda Nacional, manifestando-se sobre o assunto, em especial quanto ao contido no art. 150, inciso V da Constituição Federal, firmou o seguinte entendimento (DUARTE REZENDE, 2009):    
“O princípio constitucional previsto no art. 150, inciso V, decorre do conceito de unidade do território do país, pelo que não se pode, por meio de imposição tributária, impedir ou restringir a circulação de pessoas ou bens em todo território nacional. No entanto, a cobrança do pedágio em qualquer via de transportes é sem dúvida alguma constitucional, mesmo que este tivesse a natureza tributária, uma vez que a ressalva prevista no art. 150 V da CF apresenta-se inteiramente inútil, por não incidir o pedágio sobre o tráfego em si mesmo, que é o objeto da proibição constitucional, e nem constituir espécie de tributo interestadual ou intermunicipal. O pedágio visa tão somente a atender ao custo de conservação e melhoramentos das vias de transporte, e o que se veda é a utilização de tributo que represente uma barreira ao tráfego interestadual ou intermunicipal.”(Parecer PGFN/CDFN/No 214/89, de 03.04.89 – ANEOR – outubro/89 – p.1-1 e seg.)
Adiante firmando a natureza jurídica do pedágio como preço público (tarifa) esclareceu o parecer que:
“- o seu fato gerador é a utilização de patrimônio público pelo particular;
- a receita auferida é originária e facultativa;
- a atividade estatal de conservação de estradas federais se situa âmbito privado, sendo apenas um serviço de interesse público, sendo possível o seu exercício por particulares, e a contraprestação pelo usuário deve obedecer ao regime jurídico de serviço privado;
- há uma relação de coordenação, não estando o cidadão obrigado a usar as rodovias federais, tendo ainda, a alternativa de satisfazer a sua necessidade de outra forma, sem violação de nenhuma prescrição jurídica;
- a contraprestação por parte do usuário está sujeita ao efetivo uso das rodovias federais;(....).”
Também naquela oportunidade, a Procuradoria-Geral da República assim se manifestou sobre o assunto:
“O pedágio, na hipótese dos autos, é devido pela utilização de bens públicos - rodovias federais, pontes e demais obras-de-arte nelas existentes. Não se trata de contraprestação de um serviço público, nem do exercício do poder de polícia, mas de execução de obra pública. Assim não é taxa, mas preço, como também é, por exemplo, a contraprestação paga pelo usuário de imóvel do domínio público (em que pese a equivocada denominação de taxa, que por vezes, lhe é dada – taxa de ocupação), competindo à entidade titular do bem fixar-lhe o valor fundada em critérios que julgar mais adequados, respeitados eventuais parâmetros legais (no caso, o do art. 3º da Lei)” (op. cit. p. j-1). (REZENDE DUARTE, 2009).
Observe-se que o pedágio instituído pela Lei 7.712 de 22.12.88, além de ter sido disciplinado sob a égide da atual Constituição Federal, era cobrado pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER, que era uma autarquia federal. Ainda assim, como se viu, não se lhe reconheceu a natureza tributária sob a espécie de taxa, mas sim de preço público- tarifa – nada impedindo, outrossim, a sua cobrança por concessionária  do serviço público rodoviário.
4 A JURISPRUDÊNCIA DO STF E DO STJ
As dúvidas refletem-se na própria jurisprudência do STF. Há a decisão frequentemente invocada, transcrita na RTJ 98/230. A ementa foi o seguinte (JUSTEN FILHO, 2003):
“Tarifa básica de limpeza urbana. Em face das restrições constitucionais a que se sujeita a instituição de taxa, não pode o Poder Público estabelecer, a seu arbítrio, que à prestação do serviço público específico e divisível corresponde contrapartida sob a forma, indiferentemente, de taxa ou de tarifa de serviço público. Sendo compulsória a utilização do serviço público de remoção de lixo - o que resulta, inclusive, de sua disciplina como serviço essencial à saúde pública - a tarifa de lixo instituída pelo Decreto 196, de 12 de novembro de 1975, do Poder Executivo do Município do Rio de Janeiro, é em verdade, taxa...”   
No corpo da decisão, reprovou-se, no entanto, a pretensão de remuneração de um serviço reputado como de consumo obrigatório por meio de tarifa especificamente porque não se tinham observado as exigências do regime tributário. Note-se, no entanto, que não seria incorreto afirmar que a reprovação contemplada no julgado dirigia-se à instituição da exação por meio de ato administrativo, sem a utilização do instrumento legislativo. Mas há julgados na mesma linha, oriundos do STJ.
Isso elimina a dúvida, eis que há notícia de uma decisão proferida pela Min. Ellen Gracie, reconhecendo existir “jurisprudência já há muito consolidada nesta corte, no sentido de que o serviço de fornecimento de água é submetido ao regime de preço público e não taxa, como manifestado no ERE 54.491/PE e nos RREE 85.268-PR e &&.162-SP.
Aliás, o Superior Tribunal de Justiça já reputou cabível a cobrança de tarifa por serviços de consumo compulsório, afirmando ser ... “legal a exigência do pagamento da tarifa quando o serviço de esgoto é oferecido, iniciando-se a coleta das substâncias com a ligação do sistema às residências dos usuários”(JUSTEN FILHO, 2003).  
O Plenário do Supremo Tribunal Federal já decidiu, por unanimidade, ter o pedágio natureza tarifária, quando do julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n 800-5/RS, cuja ementa do v. Acórdão é a seguinte (REZENDE DUARTE, 2009):
“EMENTA. Ação Direta de Inconstitucionalidade – Decreto 34.417, de 24/07/92, do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, que institui e autoriza a cobrança de pedágio em rodovia estadual - Alegada afronta aos Princípios da Legalidade e da Anterioridade.
 Tudo está a indicar, entretanto, que se configura, no caso, mero preço público, não sujeito aos princípios invocados, carecendo  de plausibilidade, por isso, a tese da inconstitucionalidade. De outra parte, não há falar-se em periculum in mora, já que, se risco de dano existe no pagar o pedágio, o mesmo acontece na frustração de seu recebimento, com a diferença apenas de que, na primeira hipótese, não é ele de todo irreparável, como ocorre na segunda. Cautelar indeferida.”(DJ de 18.12.92, in JSTF – LEX -174, p79 e ss.).
No Acórdão, o Ministro Relator, Ilmar Galvão, fez consignar em seu voto, referindo-se ao magistério do douto Sacha Calmon Navarro Coelho, que:
“Uma obra pública pode ser feita por particulares ou mesmo por particulares ser conservada e até explorada. Em troca, pode o Estado dar-lhes em concessão a administração da estrada, permitindo-lhes cobrar preços pela passagem. Reconhece, portanto, que o pedágio pode revestir a natureza de preço público, e ai parece ter identificado a sua verdadeira natureza.”
Adiante, conclui que:
“Assim sendo, parece fora de dúvida que se está diante de preço público, ou tarifa, ou seja, de retribuições facultativas da aquisição de bens ou da utilização de serviços, transferidos ou prestados pela Administração Pública ou por seus delegados ou mesmo por particulares, a quem os adquira ou os utilize voluntariamente.” (REZENDE DUARTE, 2009).    
  
REFERÊNCIAS

BRASIL. CONSTITUIÇÃO Federal de 1988.

REZENDE DUARTE, Fabio Marcelo de. Concessão e administração de rodovias. Porto Alegre: Notadez, 2009.

JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria Geral das Concessões de Serviços Públicos. São Paulo: Dialética, 2003.